Para Vera Cabral, plano que estabelece 20 temas e 200 estratégias para a educação atende a pressões corporativas e restringe ações ao poder público
Bianca Bibiano
Vera Cabral, consultora de tecnologia educacional e criadora da Escola de Formação de Professores de São Paulo(Acervo pessoal)
"A educação não é vista como mecanismo para desenvolver a sociedade e ainda não será com esse plano que ela vai ganhar esse destaque."
Na semana passada, a presidente Dilma Rousseff sancionou o Plano Nacional de Educação (PNE), documento que estabelece 20 metas e mais de 200 estratégias para o setor no Brasil nos próximos dez anos. Para a economista especialista em educação Vera Cabral, a lei traz avanços, mas deixa de lado dois pontos essenciais: a exigência de qualidade e a participação da sociedade. Ela exemplifica a primeira lacuna desta forma: "O PNE tem cinco metas para tratar do aumento do número de professores com formação superior, da criação de um plano de carreira e do aumento de salários, mas nenhuma delas trata do que deve ser feito para que os docentes deem aulas melhores, elevando assim a qualidade do ensino", diz. A segunda lacuna é, segundo a especialista, a seguinte: "O PNE restringe ao poder público as iniciativas a serem tomadas, não deixando espaço para empresas e fundações que atuam com educação." Vera é consultora da BETT, feira de tecnologia realizada anualmente na Inglaterra. Em 2009, foi responsável pela criação da Escola de Formação de Professores, juntamente com a Secretaria Estadual de Educação de São Paulo. Confira a seguir os principais trechos da entrevista que ela concedeu a VEJA.com.
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A aprovação do PNE é um avanço para o ensino brasileiro? É difícil falar em avanço quando lembramos que o PNE levou quatro anos para ser votado no Congresso (antes de ser sancionado pela presidente). Ele deveria ter começado a vigorar em 2011. O processo de idas e vindas na tramitação também prejudicou a perspectiva de trabalharmos com metas claras para o decênio. O que foi apresentado, ao final, não é um plano nacional de educação, mas sim um programa do governo, que centraliza a melhoria do ensino na esfera federal e não considera outros atores, que poderiam ter sido efetivamente mobilizados para participar da decisão, como empresas e fundações que atuam com educação. O texto apresentado em 2010 foi imposto pelo Ministério da Educação e, mesmo com os debates que se seguiram sobre as metas, não define um pacto para que a gestão do ensino seja mais bem trabalhada.
O problema são as metas apresentadas? Não, as metas são razoáveis e, apesar de ambiciosas, condizentes com nossa necessidade atual. O problema está em como a lei vai ser executada. O que temos é um texto que reflete uma visão ultrapassada de educação democrática. Vimos crescer o número de manifestações da sociedade pedindo educação “padrão Fifa”, mas aprovamos um plano de educação que não aprimora a gestão do sistema. Por mais que grupos organizados tenham se mobilizado para pressionar a aprovação, a efetivação das estratégias para chegar às metas é de total responsabilidade do poder público, mais fortemente no nível federal. O MEC vai impor o plano, os Estados e municípios vão replicá-lo e as outras partes interessadas vão continuar à margem da discussão.
Em diferentes trechos o PNE fala sobre o regime de colaboração para cumprir as metas. Não seria essa uma forma de descentralizar responsabilidades? Deveria ser, mas essa expressão é usada de maneira vazia e não existe na prática. Os índices educacionais mostram que os níveis de qualidade do ensino caem gravemente na transição do ensino fundamental, sob responsabilidade da rede municipal, para o ciclo médio, a cargo da rede estadual. Essa é uma questão latente e que deve ser considerada para garantir equidade na oferta do ensino, mas em nenhum momento ela é abordada no plano, que apenas traduz a responsabilidade dos dois lados com a expressão “regime de colaboração”. Não há estratégia para evitar que o aluno passe ao nível seguinte sem ter aprendido o adequado para a etapa anterior. O plano não dá assistência técnica para as escolas saberem como vão trabalhar juntas, apenas diz que elas devem fazê-lo. A decisão fica restrita aos entes federados, mas não especifica como será a ação coordenada, decisão que ficará a cargo de negociações entre os governantes.
Como deveria ser essa perspectiva colaborativa? Deveria envolver empresas, terceiro setor e sociedade de modo geral. Efetivamente, não apenas no debate, como vem sendo feito até agora. A tecnologia poderia ser uma grande aliada, por oferecer facilidade de monitoramento e comunicação. O PNE não é o plano de uma nação que olha para a educação e caminha na mesma direção. Para funcionar, as decisões deveriam ser orquestradas. Pelas metas 15 e 16, que falam da necessidade de ampliar a formação de professores em nível de graduação e pós-graduação, por exemplo, a capacitação docente se dará basicamente nas instituições públicas de ensino superior. São objetivos que ignoram o fato de que a maior parte dos docentes estuda em instituições privadas e baratas, exatamente onde deveria haver maior preocupação em garantir formação de qualidade. Há atores que gostariam e deveriam ser incluídos na efetivação das metas e, nesse caso da formação de docentes, o setor de ensino privado deveria estar envolvido.
O PNE dá grande destaque à valorização docente, tratando do tema em cinco metas. Elas não deveriam tratar da preocupação com o que é ensinado aos professores nos cursos de formação? Sim, deveriam, mas não o fazem. A discussão sobre a valorização dos professores colocada no texto é muito coorporativa. As metas dizem que professor deve fazer graduação na área em que atua, mas desconsideram que os cursos de licenciaturas hoje não prezam pela prática, mas sim pela teoria. É contraproducente definir as metas sem considerar esse fato. Na Finlândia, a pós-graduação é obrigatória para os professores, mas os cursos oferecidos são direcionados ao aperfeiçoamento da prática de sala de aula. No Brasil, o docente que faz mestrado não volta para o ensino básico, ele aprende a ser um pesquisador e, na maioria das vezes, fica no ensino superior. O PNE deveria incentivar a necessidade de formação direcionada à melhoria da atuação do profissional no ambiente escolar, não apenas focar na certificação que o docente ganhará após o curso.
O texto peca por não vincular a valorização docente à melhoria da qualidade do ensino? Sim, nenhuma das cinco metas atrela a valorização profissional à qualidade do serviço oferecido. É claro que os professores precisam de melhores salários e planos de carreira formalizados, como foi dito na meta 17 do plano. No entanto, o tópico é descolado das outras metas, como se apenas dizer que o docente precisa ser valorizado resolvesse o problema, quando na verdade deveria seguir a lógica do mérito: o aluno aprende, o professor é valorizado porque ensinou bem. Um sistema educacional que não melhora em qualidade não favorece a valorização do profissional. O plano, entretando, não coloca essa questão.
As demais metas não criam o vínculo com qualidade? Não, o texto inteiro fala de expansão — de vagas, de matrículas, de número de professores—, mas não diz para onde vamos expandir. E, pior, prevê a ampliação apenas no setor público, que tem suas limitações e dificilmente conseguirá crescer sozinho para atingir as metas. O setor privado, que atua intensamente na área, foi rechaçado pelos movimentos sociais e por dirigentes públicos durante o debate. Isso prejudica o avanço. Um exemplo é a educação profissional, que é alvo da meta 10. A expansão das vagas atreladas ao ensino médio não prevê diálogo com o mercado de trabalho. É sabido que esse nível de ensino não tem o devido reconhecimento. Apenas aumentar o número de pessoas não irá mudar o quadro. O Senai, por exemplo, conseguiu resolver esse problema vinculando seus cursos técnicos ao mercado de trabalho, criando parcerias para estágios e programas de contratação de recém-formados. Os profissionais são valorizados porque estudam na perspectiva de mercado. Medidas semelhantes não foram consideradas no PNE.
Mas não seria reducionista pensar na educação da perspectiva do mercado? É reducionista se falarmos apenas no contexto produtivo, de formar mão de obra. Mas defendo que o ensino seja um fator de igualdade de oportunidades, não apenas o meio de garantir emprego formal. A educação dá ferramentas para o crescimento produtivo da nação. O PNE não tem essa visão, ele traz uma lista de metas baseadas na ampliação, não na qualidade. A educação não é vista como mecanismo para desenvolver a sociedade e ainda não será com esse plano que ela vai ganhar esse destaque.
Fonte: http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/pne-nao-faz-da-qualidade-da-educacao-uma-prioridade-diz-especialista
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